domingo, 24 de abril de 2011

O Fotógrafo da vida

Por Tadeu Nascimento

Cabeça de cronista é uma doidura. Todavia, o cronista é o fotógrafo da vida que retrata qualquer coisa que lhe chame atenção, cuja máquina, não precisa desligar e nem recarregar a bateria. João do Rio, Fernando Sabino, Paulo Mendes Campos, Sérgio Porto, foram grandes retratistas da vida. Mário Prata e Danuza Leão estão por aí, nos jornais, registrando melhores ângulos do cotidiano. Entretanto, Nelson Rodrigues e Rubem Braga foram imbatíveis. Tudo que vemos de interessante, fotografamos com as nossas lentes multi-neuro-focais-sentimentais e passamos em forma de texto aos leitores. Digo na segunda pessoa do plural- porque- longe de me incluir nesse seleto grupo de olheiros do tempo- não posso me eximir do que faço, para não cair em falsa modéstia, em face do papel, também modesto, de cronista que exerço, o que muito me apraz.
Há poucos meses, em um caixa de supermercado, vi um casal- casados- que os conhecia apenas de nome- já na casa dos setenta- se comunicando quase por telepatia. Mal trocaram algumas palavras. Pensei comigo: será que eles ainda se amam, fazem amor? Ou, ainda, por não terem mais pra onde correr, apenas se toleram? Tornaram-se apenas irmãos? Todavia, apesar da idade, não se aparentam incapazes para o sexo. Mas, outro dia, lamentavelmente, noticiaram-me que ele sofreu um infarto... A esposa estava tentando manter-se equilibrada. Soube que ela está no mínimo atônita, ante a possível perda. Ah, o amor!- falei cá com meus santos protetores-, Nada mais sublime! O que vale o dinheiro ou o poder diante da morte? Eis, a grande armadilha que a lei dos cosmos nos preparou! E que- por outro lado, nada mais é que a beleza da vida. O amor não deveria ser o fim, mas principalmente o meio, a longa estrada que deveríamos seguir para alcançar o fim. É o que temos e o que nos resta: viver a coisa mais preciosa da vida. A fora isso, tudo é supérfulo ou engano. Continuei divagando: como seria o cotidiano daquela senhora depois da morte de seu companheiro? Uma vida insossa, semi-estática diante das telenovelas, com um novelo a tricotar, aguardando a vez de partir desta vida? "A solidão é fera, a solidão devora". E o desamor, meu caro Alceu Valença, um veneno.
De imediato, lembrei-me de minha mãe. Depois que meu pai se foi para outra dimensão, minha mãe perdeu o viço, o brilho do olhar, a alegria pela vida. A vida que ela gostava tanto. As festas, os passos de tango, os vestidos de baile, os seis filhos lindos e bem cuidados. O ciúme pelo meu pai garboso e sedutor, dentro de um terno bem talhado. Tudo que tinha luz, foi-se apagando depois daquele 6 de dezembro de 2005, quando o meu velho partiu para sempre, até se apagar de vez, em 24 de maio de 2010, quando minha mãe despediu-se vida. A casa nº 276 da Rafael Nascimento ficou imensa e fria. Silenciosa e triste. Naquela calçada está faltando ele e naquela mesa (da copa/cozinha) está faltando ela. Rio Verde que não deveria se madurar, madurou-se de vez (contrariando a minha vontade e o verso "Verde que te quero verde" de Federico Garcia Lorca). Muitos frutos foram ao chão. Outros estão brotando nos lares, agora dos netos. Pena que a civilização cristã judaica não nos ensinou a perder. Principalmente a quem amamos. Na religião budista, a morte é apenas o fim de uma tarefa. A tarefa de evoluir o espírito.
Voltando ao casal no supermercado. O marido (empurrou o carrinho de mantimentos) e a esposa, caminharam para o carro. Como também eu havia passado pelo caixa, segui-os de perto até ao estacionamento. Ainda me lembro quando guardavam as compras no porta-malas: ela abriu um dos saquinhos, sem lhe dizer nada, com ternura angelical, rasgou o papel que envolvia a barra de chocolate e a levou até a boca do companheiro pra ele morder...
"O tempo não para no porto, não apita na curva, não espera ninguém" (Reginaldo Bessa- Festival Abertura, Rede Globo, 1975).