quinta-feira, 13 de agosto de 2009

JOÃO SALDANHA

Lembranças de João Saldanha


Por Tadeu Nascimento

Imagina você sentado à uma mesa de bar e, de frente Vinicius de Moraes bebendo uísque com Tom Jobim e Rubem Braga, ou ainda você no Maracanã e logo na fila de baixo Chico Buarque, Cyro Monteiro e Nelson Rodrigues, assistindo a Seleção Canarinho de 70, sob o imaginário hino “Noventa milhões em ação/ Pra frente Brasil do meu coração!” e lá nos gramados Pelé, Tostão, Rivelino e Gerson. Não seria algo de se emocionar? Nas décadas de 1960/70 isso era bastante possível, pois os personagens citados de fato se encontravam nos bares, no Maracanã, etc. O Brasil era rico em talentos. Mesmo sob os cravos da ditadura, grandes personalidades da música, da literatura, da arquitetura, da pintura, do esporte e mesmo da política se reuniam, no Rio de Janeiro, em lugares como o “Antônios”, a “La Fiorentina”, a “Colombo” e tantos outros. Uma cidade que abraçava os gênios da música Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Dorival Caymmi, Ary Barroso, Lamartine Babo, Braguinha, Antônio Maria, os então meninos Chico Buarque, Caetano Veloso e Gilberto Gil. Os escritores Jorge Amado, Carlos Drummond, Manoel Bandeira, Rubem Braga, Fernando Sabino, Otto Lara Resende, Guimarães Rosa, Nelson Rodrigues, Sérgio Porto. Os pintores Di Cavalcante, Portinari. Na arquitetura havia Oscar Niemayer, Lúcio Costa. No futebol Pelé, Garrincha, Tostão (que era do Cruzeiro, depois Vasco), Rivelino (do Corinthians, depois Fluminense), se encontram no grande palco que era -e ainda é- o Maracanã. Na política tínhamos o polêmico deputado pelo Rio de Janeiro e o mais votado no Brasil até então- Leonel Brizola que atordoava os militares e o eloqüente deputado e depois governador Carlos Lacerda que excitava- pelo lado direito- os mesmos militares. Em meio a tantas pessoas interessantes havia um personagem extraordinário chamado João Saldanha que mexia com todos brasileiros- de norte a sul, da esquerda e da direita. O Brasil, na certa perderia muito da graça daqueles “Anos também dourados” se Saldanha não existisse. Estamos falando de um Brasil comovente como nos dias vividos na copa do Mundo de 70. Hoje, em plena democracia, estamos pobres de talentos em qualquer área.

João Alves Jobim Saldanha era um gaúcho- primo de Antônio Carlos Jobim- que se ajustou tão bem ao Rio de Janeiro que se tornou um perfeito carioca. Afora isto, trazia consigo a valentia dos maragatos do Rio Grande do Sul. Sua história é muito interessante. Começa como traficante de armas aos 6 anos de idade quando seu pai lutava contra a oligarquia dos ximangos de Borges de Medeiros nos pampas gaúcho. Foi líder estudantil aos 20 anos, dono de cartório aos 33, membro do Partido Comunista Brasileiro a vida toda. Foi jogador e técnico de futebol, campeão de basquete, jornalista, comentarista de rádio e televisão, analista de escola de samba, escritor, candidato a vice-prefeito do Rio de Janeiro. Todos os dias- de 1970 a meados de 1973- no Jornal Nacional havia “Dois minutos com João Saldanha” sobre os bastidores do futebol brasileiro- a Globo poderia reeditar este quadro, mas cadê outro João Saldanha?

Com a vitória da Revolução de 30, os pais de Saldanha mudaram para o Rio de Janeiro. Tinha ele 14 anos. No Rio Grande do Sul torcia pelo Grêmio, mas quando chegou ao Rio o Botafogo tomou conta do seu coração. Ali foi jogador e técnico. Treinou o campeão Botafogo de Nilton Santos, Didi, Garrincha, Amarildo, Quarentinha. Todavia, Saldanha tinha um temperamento forte e não aceitava desaforos. Exemplos: nos estúdio da Rede Globo, em 17 de dezembro de 1967, no programa Resenha Facit, presentes Armando Nogueira, Nelson Rodrigues, Luis Mendes: em pauta o resultado da vitória do Botafogo de 2X1 no Bangu (o Bangu buscava o bi-campeonato) à tarde no Maracanã. Saldanha com a sua habitual franqueza, disse que o goleiro teve uma atuação suspeita no gol do Bangu. Castor de Andrade, presidente do Bangu, que residia ali por perto, invadiu a TV Globo portando um revólver de ouro maciço e ameaçou Saldanha que não se intimidou e atirou um pesado cinzeiro sobre Castor e depois um copo dágua. Os amigos seguraram os contendores e por sorte não aconteceu o pior. Castor, dono de jogo de bicho, famoso por sua periculosidade, foi retirado e o programa continuou. Mas o goleiro Manga entendeu que o negócio era com ele e três dias depois no Mourisco num jantar de comemoração Manga se levantou e partiu pra cima de Saldanha que acabara de chegar com Bebeto de Freitas- seu parente e que anos depois seria presidente do Botafogo- e que sempre andava armado, atirou em Manga por 2 vezes, que não acertou o alvo porque Bebeto e Luis Mendes seguraram o seu braço de maneira providencial. Manga em disparada fugiu e pulou um muro e desapareceu na noite. Em outra história, Saldanha perseguido pela ditadura por ser comunista, ao chegar para o trabalho na Rádio Nacional, ouviu do diretor Jorge Curi que ele, Saldanha, estava proibido de falar naquele microfone. De pronto Saldanha respondeu: “Olha Curi, manda os teus militares enfiarem este microfone no rabo!” Quando treinador da Seleção, outubro de 1969, um repórter lhe perguntou sobre a escalação do time e João Saldanha a forneceu sem o nome do centroavante Dario, e o repórter o desafiou: mas o presidente Médice gostaria que Dario fosse convocado! Saldanha respondeu de imediato (está no Youtube.com): “Pois olha: o presidente escala o ministério dele que eu escalo o meu time.” Deu no que deu. Meses depois João não era mais o técnico, mas montara toda estrutura para a Seleção ser campeã.

O caso Pelé. O fato de Pelé ter errado três jogadas em que normalmente não erraria, Saldanha achou que o craque estava com problema na visão. Exigiu rigoroso exame oftalmológico. Surgiu então a celeuma de que Pele não poderia ir à copa. E isto seria o caos no meio futebolístico. Mas numa mesa redonda da Rede Globo Saldanha desmentiu a história: “O que o Pelé tem é mais grave. O problema do negão é a falta de dinheiro. Está jogando partida atrás da outra para ganhar a grana que perdeu em seus negócios lá em Santos!” Estes dados se encontram na biografia de João Saldanha escrita por João Máximo.

Saldanha morreu- no palco onde sempre melhor representou- comentando a Copa do Mundo. Na Itália em 1990. O único brasileiro, segundo ele mesmo, que assistiu todas as copas do mundo até então. Como diria Nelson Rodrigues, Saldanha era um daqueles sujeitos de “defeitos luminosíssimos.” Estas são algumas histórias de um personagem extraordinário de uma época sem igual.

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